domingo, 2 de agosto de 2015

O dia e as horas

          Quando o relógio bateu meia-noite, ele nasceu. Mas não era o relógio da parede, ou do pulso de seu pai... O relógio que ganhou vida ao mesmo tempo que ele era um relógio especial.
          Quando tinha doze anos, seu avô lhe chamou e disse:
          “Acontece há gerações na nossa família... Nascemos com um relógio no peito, bem dentro do coração. Ele começa a zero hora e a meia-noite... para.”
          Seu tempo já estava passando, desde que nascera.
          “Logo você se sentirá diferente,” disse ele. “Acho que pro seu relógio já é seis da manhã.”
          Ele estava certo. Era como se sentisse que estava mais vivo... Como se tivesse despertado.
          A partir dali começou a procurar marcações do tempo em sua vida. Como quando sentiu, aos vinte e cinco anos, que finalmente era um homem adulto. Era a marca das dez da manhã. Naquela época ele começou a trabalhar e logo encontrou alguém para partilhar a vida. No dia do casamento, não poderia ser diferente, sentiu as garras do tempo lhe arrancando mais uma hora. Em seu coração já batia as onze.
          Conversou com seu pai a respeito do que estava sentindo, mas ele lhe disse que seguisse em frente.
          “O tempo é como um cordão que só nos puxa pra frente,” disse ele rindo. “Eu já estou chegando às seis!”
          Por alguns anos ele juntou dinheiro e comprou uma casa e quando seu primeiro filho veio, teve confirmação de que era tudo verdade. Ao colocar o ouvido no seu peito, não ouviu o tum-tum que esperava, mas sim um tic-tac que lhe rendeu pesadelos por uma semana. Ele tinha um relógio também!
          Seus outros filhos nasceram e foi uma fase realmente feliz. Sentia-se verdadeiro. Sentia-se completo. Seria o meio-dia da sua vida?
          Depois de alguns anos, a velhice de seu avô ficou aparente. Ele lhe confessou que havia perdido a noção das horas em algum momento depois das sete ou oito e isso estava lhe deixando aflito. Não sabia mais quando a hora final chegaria.
          “Ela vai chegar,” disse seu avô. “A hora... eu sei que ela vai chegar.”
          Não demorou muito. Seu avô morreu numa tarde de outono e, mesmo que natural, não deixou de ser triste.
          “A verdade,” disse seu pai no final do velório, “é que nenhum de nós sairá daqui vivo. A hora chegará para todos nós.”
          Naquele dia, algo dentro dele mudou (seria mais uma hora?). Começou a viver sua vida de forma diferente. Fez mudanças de hábitos e de opiniões. Pediu demissão do emprego. Cortou relações com pessoas que não lhe agregavam, até mesmo os velhos amigos. Não queria perder tempo nenhum, pois tinha pressa. Sentia seu tempo escorrendo por entre os dedos, como se fosse areia, e a cada dia podia ouvir mais rápido: tic-tac, tic-tac, tic-tac!!
          Quando seu pai lhe perguntava sobre seu relógio, ele mudava de assunto e desconversava, mas aquilo o machucava por dentro. A verdade é que não estava mais acompanhando as horas desde a morte de seu avô. Até que um dia explodiu e revelou a verdade ao seu pai.
          “Eu não quero mais saber das horas! Que se dane o maldito relógio!”
          O tempo passou e ele só piorou. Fazia o possível para se esquecer do tempo, para não pensar nos dias, para não lembrar das horas. E evitou ao máximo ver a velhice de seu pai, pois isso só lhe lembrava da inescapável verdade: ele também ia envelhecer.
          Até o dia em que estava em sua casa, totalmente sozinho, e percebeu que algo dentro de si lhe chamava... Era o relógio.
          Ele parou. Não reparava nas horas há anos e sentiu vontade de olhar de novo. Em seu íntimo perguntou: “Relógio, que horas são?”
          A resposta foi avassaladora. “Não há mais horas... Só cinco minutos.”
          Um desespero lhe acometeu e ele começou a chorar. Pensou em todos os amigos que perdera, nos anos dos filhos pequenos que não voltariam mais, nos beijos de sua ex-mulher, e, mais do que tudo, em todos os momentos em que se recusou a olhar para o tempo. A hora que ele tanto temia, afinal, havia chegado.
          O relógio bateu meia noite e com a mesma suavidade que começou, simplesmente parou. Mas não foi do jeito que ele havia imaginado.

          Olhou para baixo e viu o relógio em suas mãos pela primeira vez. Era muito bonito, dourado e redondo. E tinha apenas um ponteiro comprido que apontava para cima.
          “Olá.”
          Ele se assustou. Lembrava-se de estar sozinho em casa. Mas não mais... Ao seu lado estava sentada uma bonita mulher ruiva de olhos claros e expressão bondosa.
          “Eu vim,” disse ela, docemente.
          “Quem é você?” ele perguntou, um pouco assustado.
          Ela apenas acenou para o relógio.
          “Você estava me esperando.”
          Em sua mão, o relógio brilhou e em seu centro surgiu um novo ponteiro. Ele era mais curto do que o outro e também apontava para cima, marcando exatamente a meia-noite. 
          “Você é a hora...” disse ele lentamente, quase em choque. “Você é a hora! Eu sabia que você chegaria. Mas... não assim... Uma mulher?”
          “Você estava indo tão bem antes de ouvir falar de mim,” disse ela, e estendeu os braços para receber o relógio de suas mãos. “É sempre assim. Estão indo bem e então se assustam quando descobrem que eu vou chegar.”
          Ele começou a chorar. Passara a vida fugindo dela...
          “Eu fui um tolo...” disse ele, cabisbaixo. “A vida sem você foi como olhar para um relógio só com o ponteiro dos minutos.”
          Ela sorriu.
          “Não se preocupe agora... Eu estou aqui”
          Enquanto sorria, começou a dar corda no relógio dourado e seus ponteiros foram girando para trás. E ele começou a se lembrar das fases de sua vida e os momentos marcantes que vivera. Eram as horas perdidas. Ele se viu girando em uma espiral que o levava para trás, voltando sua memória cada vez mais, descendo fundo dentro de si. 
          Até que, um minuto antes da zero hora em que havia nascido, ela parou e olhou para ele mais uma vez.
          “Não se desespere quando souber que eu venho... Se fizer isso, eu sempre estarei com você.”
          Ele acenou. E ela deu a última volta no relógio. E então ele se sentiu caindo, como em um sonho estranho e profundo. E sentiu o ar entrando em seus pulmões, abrindo-os pela primeira vez. Começou a chorar e a gritar, mas sua voz estava diferente. Abriu os olhos e viu rosto de seu pai, mas ele também estava diferente. E sentiu em seu peito a mesma sensação que já conhecia, mas que dessa vez não perderia jamais: As horas batendo vivas em seu peito. E, antes de se esquecer de tudo, sentiu felicidade porque teria uma nova oportunidade de viver o dia. O dia... e as horas.