sexta-feira, 18 de novembro de 2011

História de um Monstro



Sempre tive algo a meu respeito que desconheci.
Não que fosse algo misterioso, ou ainda cheio de segredo. Não o era. Mas ainda assim, fazia parte daquele lado oculto e obscuro da gente que faz a espinha gelar a noite embaixo do cobertor.
Algo ali no fundo de mim teimava em me falar. E eu não sabia o que era, e me parecia uma sombra de mim.
Era um monstro que me acompanhava onde quer que eu fosse. Ia comigo, dentro da mochila, para a escola. Ficava em silêncio durante a longa caminhada na avenida para se abrir quando eu entrava saguão adentro. Mas continuava assim em mim, em silêncio.
Percebi que falava aos meus ouvidos com suas palavras amedrontadas quando passava em meio a uma encruzilhada. Quando me deparava com uma estrada, dois caminhos a seguir.  O que fazer? Aonde ir?
Desde criança, onde uma escolha houvesse que eu não pudesse escolher, esse monstro colocava as garras a mostra. Porque ele era o meu medo de errar.
É um monstrinho assim, até que engraçado. Tem dois chifres que se chamam indecisão e ignorância. Tem um focinho feio chamado rejeição e uma boca chamada desesperança que me diz palavras más, mas só porque ele também as escuta.
Vive com medo da sombra. Tem medo do ruído dos próprios passos na estrada. Se vê sua sombra no chão do planalto, coitado... Só falta correr de medo de si.
E o que sou eu, que tenho esse monstro dentro de mim? Serei eu escravo ou senhor desse pobre palhaço azulado?
Não. Sou eu o cavaleiro seu. Ele me segue porque sabe, bem no fundo, que só eu posso livra-lo de ser o que é. E quando anda atrás de mim, e quando ando com passos firmes, ele sente quase como se não existisse e se sente bem.
Mas se eu paro por um segundo, ele sente que o mundo todo como num abalo se desfaz, toma a minha frente a correr sem direção, vai e volta sem sair do lugar. Mas basta que eu tome novamente a frente para que ele se aquiete e fique de novo em paz.
Vê que é como uma criança que não sabe viver sem o pai. Porque só ele tem a espada da justiça e a luz pra tomar as decisões.
Se nós buscamos uma luz, ele busca a luz em nós. Quando brilhamos nossa própria luz, o monstro do medo se sente bem e fica calado. Mas se por algum momento nós deixarmos nosso caminho escurecer, ele não sabe o que faz. O medo, pobre coitado, foge de si.
E se um dia não tivermos mais medo nenhum é porque ele, monstruoso acompanhante, já se tornou um fiel escudeiro. Não mais acredita nas palavras más que ouve e não as repete aos nossos ouvidos. Já se tornou confiante de nós.
Aprenda a não deixar que ele ande à sua frente e jamais terá problemas com ele. Mas se um dia te faltar a luz, confia em teu medo que ele pode te pegar pela mão e guiar por um caminho mais seguro. Porque ele também procura um caminho na escuridão.
Olha pra ele como para uma criança e saberá o que realmente é. Vestígio do seu mundo de criança. Fruto de um passado esquecido. Marca de um tempo, há muito, perdido.
Não odeie seus medos. Se os sente, acolhe-os, venera-os, domine-os. Eles também precisam ser ouvidos e aceitos. Eles também são humanos. E não queira jamais destruí-los. Eles fazem parte de quem você é.
E assim será como o cavaleiro na noite escura. Carrega consigo toda a luz e por isso não sente medo algum. Ele também se tornará parte de si. Ele também se tornará parte de sua luz. E o monstro deixará de ser monstro. Não vê que então ele vira príncipe?

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Uma página em branco

Nem todos os cantos de todos os anjos poderiam revelar os mistérios guardados em uma página em branco.
Reconheço que uma moldura e uma tela nua também têm seu valor. Quem dirá o bloco branco de mármore o que esconde, será um David ou uma Vênus.  Mas não têm o mistério que guarda uma página em branco.
                Não, porque a alma do escultor é sólida. Toma forma na pedra dura. Mas a alma do escritor não toma forma, mesmo que colocada em sua obra. Ela chega ainda moldável e volátil à mente do leitor, onde encontrará como uma semente a terra, o seu pensamento.
E ao sentar-se diante de uma mesa pronto pra colocar em linhas o que já se imaginou um milhão de vezes o escritor mostra aquilo que o inspirou. Mas, como num gesto de graça, deixa a porta aberta e o vento do campo não deixa seu ânima tomar forma fixa. Permanece em estado alterável, pronto para se encaixar na mente em que irá morar quando for traduzido pelos olhos. E será menos entendido por sua razão do que admirado, quando tomar o seu merecido banho de lágrimas no coração.
Porque o artista coloca na mão a sua alma, o seu coração. De suas mãos, através dos dedos, seu espirito escoa, derrama-se no papel, como água sobre a mesa escura. E, uma vez escritas as palavras, impossível saber para que lado irão dentro da mente do leitor.
Qual será o processo pelo qual retornarão ao estado de ideia original?
O que define este processo é o talento do leitor. Não para imaginar, mas para ler nas entrelinhas a pureza da página em branco. Ela guarda a imaginação do escritor.
Grande será o leitor que puder ver a criatura bem ao lado do criador. Palavra escrita lado a lado com aquela imaginada, mas omitida. Este verá no espaço entre cada palavra o branco instigar seu pensamento, vencer as barreiras do que foi escrito para fazer nascer uma nova ideia. Descobrir os maravilhosos mistérios que se encontram na ideia original e compreender que as palavras dão somente uma interpretação de um pensamento, mas que este pode estender-se ao infinito.
Ter o dom de ler abre as portas da imaginação. Os minutos passados em tão boa companhia reanimam o sentimento e despertam o coração. Companhia essa que se faz com um bom livro, seja de prosa ou poesia, de amor ou melancolia.
Mas na alma do leitor há sempre uma felicidade, desde que seja arte o escrito. Porque conhece como poucos que tudo vai além do que se diz. E que tudo vai além do que se pensa. Basta entender o universo contido em cada página. Em cada página em branco.