domingo, 19 de julho de 2015

Os Gêmeos da Sicília


          Fui uma enfermeira por toda minha vida. Atendi centenas de pacientes ao longo de muitos anos, mas não consigo me esquecer da primeira pessoa de quem cuidei, e que foi o início da minha profissão: Meu avô.

          Nas muitas tardes ensolaradas em que cuidei dele em nossa fazenda, conversávamos sobre tudo. Sua infância, seu pai, suas primeiras namoradas, minha avó... Mas de todas as histórias, parecia haver uma que sempre lhe voltava à memória e me chamava a atenção. Sobre como em uma noite de São João, quando tinha apenas vinte e cinco anos, ele conheceu os gêmeos da Sicília.

          Eram meninos de dez anos à época e não pararam de lhe importunar. Cutucaram suas costas enquanto tentava assistir ao rodeio, pisaram em seus pés repetidas vezes, para depois correr e rir descontroladamente, amarraram seus sapatos um ao outro enquanto estava sentado e depois se divertiram quando ele tropeçou e caiu. Por algum motivo, cismaram com meu avô.

          Ele olhou para os gêmeos tentando assusta-los, mas talvez seus olhos passassem mais pena do que medo. Ele não viu outra alternativa senão suplicar para que o deixassem em paz.

          “Você está triste demais,” disseram eles, “é divertido te alegrar.”

          Aquilo foi uma surpresa para ele. Eles quiseram saber porque ele estava triste, e seus olhos pousaram marejados e vermelhos sobre uma moça da cidade de Nova Itália.

          Quando a viu um ano antes, numa noite de São João como aquela, seu coração ficou alegre e se apaixonou. Seus olhos verdes reluziram à luz da fogueira e o encantaram. Mas ela, moça sofisticada da cidade, nunca lhe deu atenção e isso o deixou triste demais. Os gêmeos logo entenderam.

          “Façamos um trato,” disseram eles. “Você nos compra um balão e, até o final da noite, terá esquecido sua tristeza. Nós prometemos!”

          Mais para agrada-los do que a si mesmo, ele consentiu. Comprou um balão de São João, com as cores que os gêmeos quiseram, afastaram-se um pouco do festejo e ficaram embaixo de algumas árvores para soltar o balão. Mas, no ultimo instante, os gêmeos pediram-lhe que fosse buscar um retrato de São João para presentear a Deus.

          Mesmo não sendo religioso, ele voltou à quermesse procurando um retrato que pudesse utilizar. Quando voltou, porém, não os encontrou em lugar nenhum e reparou que o balão estava diferente. Eles haviam amarrado diversos saquinhos de areia nas suas laterais.

          “Para que são os sacos?” pensou meu avô.

          Como já estava pronto, ele colocou o balão de pé, acendeu o fogo e segurou-o para que levantasse voo. Mas, com todo o peso dos sacos de areia, ele mal levantou e já começou a cair. Ele apenas não queimou porque meu avô foi mais rápido, assoprando a vela enquanto ainda estava no ar.

          De repente, sentiu os gêmeos passarem correndo ao seu lado e se surpreendeu. Eles saíram do meio das árvores, seguraram suas mãos e começaram a gira-lo, dando-lhe voltas e mais voltas e rindo-se sem parar. Aquela risada tocou seu coração e ele logo começou a rir e girar por conta própria com os gêmeos. E então, depois de muitas voltas, eles pararam e um dos irmãos acendeu novamente o balão. Depois tirou do bolso uma tesoura e cortou o fundo dos sacos um por um, fazendo a areia lentamente cair no chão e o balão ficar mais leve, até que começou a subir e subir cada vez mais alto, em direção ao céu. E juntos eles admiraram o pontinho que foi se juntar as estrelas e que depois desapareceu no céu claro da noite.

          “Pronto,” disseram eles sorrindo. “Lá vai ele…”

          “Por que fizeram isso?” perguntou ele. “Para que os sacos?”

          “Os sacos? Nada. Mas o que havia neles...Era tanta tristeza...”

          “Era tristeza, não era?” disse ele, com as mãos nos joelhos, recuperando o fôlego das muitas voltas e risadas que dera.  “Eu pude sentir quando caiu no chão. Foi como se... eu estivesse mais leve. Mas por que?”

          “Ora, pensamentos tristes, nada mais. Veja só... Cada pensamento triste era como um grão de areia te puxando para baixo. Parece pouco, mas quase te derrubaram no chão,” disseram apontando para seus pés, cobertos da areia que caíra. “Mas acho que uma nova chance lhe fará bem,” continuaram eles sorrindo, “e agora... pode dormir.”

          Ele nunca entendeu o que aconteceu, nem se lembrou de como adormeceu. No dia seguinte acordou embaixo das árvores com o retrato de São João ao seu lado e uma leveza indescritível no coração. Era como se tivesse nascido de novo. Ao pensar na moça da cidade, não pôde sequer se lembrar de seu rosto ou de seu nome, nem nunca a viu novamente. E nunca mais foi um homem triste até o final de sua vida.

          Sempre que contava essa história, ele dizia aquilo que mais o intrigara em todos aqueles anos: Não bastasse a mágica que os gêmeos fizeram em seu coração, nunca houve sequer uma pessoa que pudesse lhe confirmar sua existência. Ninguém além do meu avô jamais vira um par de gêmeos da Sicília naquela cidade, nem se lembrava deles naquele festejo de São João. Era como se eles simplesmente não tivessem existido, muito embora ele nunca tenha aceitado essa possibilidade.

          Numa tarde de outono um pouco fria e úmida, ele me disse:

          “Vou me embora pros campos do céu... Preciso me encontrar com sua avó e com os gêmeos da Sicília.”

          Segurei sua mão e tentei lhe dizer que tudo ficaria bem, mas ele não pareceu me ouvir.

          “Quando eu me for,” continuou ele, mais devagar, “na primeira noite de São João, depois que eu me for para os campos do céu...”

          Eu apertei sua mão e seus olhos ficaram marejados. E então comecei a chorar. Senti sua vida se esvaindo, como a areia que caíra em sua história. E ele continuou.

          “Levante um balão em minha homenagem. Diga a todos que cantem... e dancem... e diga que mandem a tristeza embora... como areia para o chão ou um balão para o céu. Isto eleva a vida. Foi isto que os gêmeos fizeram! Foi assim... naquela noite... que eu comecei a viver.”

6 comentários:

  1. Que bela inspiração veio juntar-se ao seu talento, Davi. Beleza de conto, beleza de mensagem.
    Parabéns, amigo.

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  2. Davi,
    a leveza do conto faz pensar em quanta areia vc já derramou... rrs
    Gostei do texto: enxuto, dentro de um senso literário e poético.
    Assis

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  3. Muito bom meu amigo.
    Estou tendo um momento da minha vida que tenho refletido muito.
    Me fez sentir melhor lendo o texto.
    Parabéns.

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